Duas matemáticas

Num país que provavelmente tem uma das maiores taxas – senão mesmo a maior taxa no mundo – de partidos políticos per capita, quem consegue perceber o desprezo a que todos eles votaram a questão crucial (o fundamento) da própria representação politica na democracia guineense, questão essa que lhes diz respeito diretamente!

Desprezo pelo pensamento político disponível e, ainda mais surpreendente, o desinteresse pela produção de pensamento político. Mas o que é que se passa connosco?

Volto, pois, à enésima vez, a trazer à consideração do leitor um tema – que recentemente tratei num artigo publicado por ocasião do 46º aniversário do jornal Nó Pintcha com um subtítulo “Representação Política”, que é – a questão das condições técnicas de produção da representação política no nosso sistema eleitoral, tema que, alguns eleitores, pediram-me para voltar a abordar nesta edição.

No texto precedente – Acelerar em vez de remediar – defendi o compromisso, dos protagonistas políticos, de pôr termo à instrumentalização governamental (central) do poder local, fazendo deste desiderato uma bandeira diferenciadora da X Legislatura (2019-2023), no bom sentido. No presente artigo – Duas matemáticas -, venho defender mais um compromisso, dos partidos eleitoralmente relevantes, de também pôr termo à crise de representação política na democracia guineense.

Ora, fazer as primeiras eleições autárquicas é tarefa que vai, certamente, exigir alguns meses de trabalho intenso, com a disponibilização de recursos inerentes a um empreendimento dessa envergadura (por exemplo, recursos financeiros), podendo, contudo, toda a sua programação ficar concluída ainda em 2021. Mas, o esforço para acabar com a ‘brincadeira’ que se instalou na produção da representação politica parlamentar, exigiria um só dia de trabalho (desde que não seja mais um dia de brincadeira), sim, um só dia de trabalho, dá e até sobra.

Método d’Hondt, um bode expiatório

Diante da magnitude das distorções verificadas nos resultados eleitorais – que, em 1994, surpreendeu quase toda a gente -, a ‘explicação” para o sucedido foi imediata: “é por causa do método d’Hondt”! E, assim, acreditaram ter arrumado o assunto… ao invés de o tentarem resolver.

Afinal, qual era – e, supostamente, qual ainda é – o problema, alegadamente, de ser o método d’Hondt, pela conversão dos votos em mandados, que provoca ‘distorções” que, por vezes, chegam realmente a ser muito chocantes? Era essa a questão que interessava pôr, e que, resignadamente  porque ‘djitukaten’ – nem chegou a ser posta.

Não se deram ao trabalho de tentar perceber a física das distorções que, na verdade, resultam da “fragmentação do corpo eleitoral nacional”, isto é, da sua subdivisão em pequenos círculos eleitorais. (v. Hans Kelsen). Daqui, poder-se-ia logo inferir o seguinte: quanto maior for a quantidade de círculos eleitorais (e, sendo numerosos, eles não podem ser grandes pelo número de deputados que neles se elegem) – que é exatamente o caso do sistema eleitoral guineense -, sim, quanto mais pequenos forem os círculos eleitorais, tanto maiores serão as distorções que se produzem na representação política. Problema que, por exemplo, no sistema eleitoral alemão foi resolvido com rigor (v. Dieter Nohlen) não precisando sequer de redesenhar a geografia dos colégios eleitorais.

Vou resumir este ponto, assim: o método d’Hondt, na minha expressão, é a ‘segunda matemática”. Claro que é “segunda” por ordem cronológica, todavia, é dela que se tem falado não só em primeiro lugar, mas quase exclusivamente para se tentar justificar tudo, até mesmo o injustificável. Método d’Hondt – a fórmula matemática que se aplica sobre os votos expressos válidos, uma condição que, como se percebe, só se reúne a posteriori (depois de já concluída a votação). E serve para distribuir mandatos aos partidos políticos, teoricamente na proporção dos votos obtidos por cada formação politica concorrente.

Pretendi, assim, mostrar, que é muito mais a dimensão (na circunstância: a pequenez) dos círculos eleitorais do que propriamente o método d’Hondt, o fator que mais tem contribuído para distorcer a proporcionalidade da representação política. E como se sabe, o nosso sistema eleitoral é constituído basicamente de micro-círculos eleitorais, sendo que o maior deles, o Circulo Eleitoral 12, só elege 6 deputados. Enquanto que, por exemplo, Cabo Verde, com menos de metade da nossa população votante, tem círculos eleitorais que elegem bem acima de 6 deputados, sendo que o maior deles (Santiago Norte) elege 19 deputados. Sobre isso, já publiquei vários estudos, sendo um deles bastante exaustivo…

Crise antecipada, crise a priori vamos ver agora uma outra dimensão da crise de representação de que padece o nosso sistema politico. Também ela é uma crise que já vem armadilhada na própria lei eleitoral, portanto, a priori. Que, por isso mesmo, reproduz garantidamente uma representação política distorcida, errada, injusta. Enfim, que viola o princípio de igualdade e, assim, tornou-se uma afronta à ética política. E isso – perdoe-me o leitor pela insistência – não tem nada a ver com o ‘bode expiatório” método d’Hondt.

A questão que se põe é esta: como se faz, ou como deveria fazer-se para os círculos eleitorais (note-se: não é para os partidos políticos) a distribuição dos deputados, claro, antes de serem realizadas as eleições? É aqui que entra a “primeira matemática”. Que serve apenas para determinar e fixar esta coisa muito simples: quantos deputados cada circulo eleitoral tem direito a eleger?

Ciente, com certeza, de que tal distribuição traduzirá uma variação que é dependente da evolução da população eleitoral guineense. Variável que terá de acompanhar e refletir tal evolução, nomeadamente: a composição dinâmica da população votante e, em particular, a sua distribuição espacial (isto é, a sua distribuição pelos círculos eleitorais), informação que o recenseamento eleitoral atualizado disponibiliza regularmente, de 4 em 4 anos.

Sim, com base nos dados atualizados do mais recente recenseamento eleitoral, como determinar a legitimidade de círculos eleitorais de 4 deputados; de alguns de 5; de só um, de 6 deputados e da maioria deles de apenas 3 deputados? Como se justificou tal distribuição, que ainda se mantém, vinte e cinco anos depois de ela ter sido estabelecida na Lei Eleitoral? É isso que a Lei Eleitoral em vigor não diz, é isso que o legislador se esqueceu de dizer.

Concluindo: no artigo 122º temos uma ‘matemática’ – um método, o d’Hondt – para, realizado o ato eleitoral, distribuir deputados aos partidos políticos (…). Mas no artigo 115º, ao contrário, falta uma ‘matemática’ – um método – para, antes das eleições, determinar o número de deputados a eleger por cada círculo eleitoral (…). O resultado desta prolongada negligência – pois nem quero acreditar que foi por ignorância –, não foi nada bom para a representação política (proporcional) que foi prometida pela nossa democracia.

Em 2004, num pequeno trabalho que publiquei, dizia: “na expressão mais polarizada do que parece traduzir um verdadeiro abandono do conceito, 1 voto válido depositado no circulo eleitoral 17 “valeu” 3 votos válidos depositados no circulo eleitoral 28. Ou seja: 3 deputados “custaram” 8.084 votos no círculo 17; e 3 deputados no circulo 28, “custaram” 24.279 votos.

Olhando bem pata os números do escrutínio das eleições de 2004, é o aspeto injusto dos resultados, talvez, a imagem que melhor parece corresponder aos factos”.

De então (2004) para cá (2019-21), a situação evoluiu de mal a pior. Nas eleições legislativas de 2019, por exemplo, 1 eleitor do Circulo Eleitoral 4 (com 12.843 inscritos) “valeu” 4 eleitores no Círculo Eleitoral 29 (com 56.622 inscritos). Ambos os círculos eleitorais – o de 12.843 eleitores e o de 56.622 eleitores – elegeram 3 deputados cada um, incrível! E sem nenhum método d’Hondt. Enfim, sobre tudo isso, nem uma palavra de inconformismo por parte da classe política, nenhum protesto da cidadania, nem sequer um grande sobressalto da academia.

Quê cu ótchânu?

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