Desenvolvimento, um salto de fé?

Bravo, Allen Yero Embaló! Jornalista que no debate semanal da Rádio África, formulou, de novo, a primeira, por assim dizer, de todas as perguntas que uma cidadania ativa não pode dispensar. Aquela a que os políticos estão mais expostos e que, por si mesmo, deveriam procurar responder, mas que, surpreendentemente, não gostam de responder, mesmo que apenas tentativamente.

Reproduzo aqui a pergunta que o meu amigo Allen Yero Embaló, e que, pelo tom da sua voz, mal disfarçava uma incontida insatisfação: “mas o que pensam mesmo estes políticos guineenses quando falam de ‘desenvolvimento’?”. Allen, “estes nossos políticos” dificilmente responderiam à tua pergunta, talvez, por acharem que “de desenvolvimento” eles já sabem tudo. De facto, não andam nada preocupados com respostas. Até parece que não lhes move nenhuma inquietação sobre o fenómeno de desenvolvimento – sua cultura, suas medidas e, claro, também a sua dimensão ética, nomeadamente, de justiça social.

É como se lhes bastasse ter fé no desenvolvimento – e, depois, repetir sem cessar, como um refrão, a palavra desenvolvimento, que é exatamente isso que todos eles fazem. À espera de que, assim, um dia -, que julgam que vai chegar mais cedo do que tarde -, verão desencadear-se (por graça divina ou por mera sorte) o processo de desenvolvimento económico da Guiné-Bissau.

É a classe política que nós temos, que sofre claramente de uma espécie de “doença” a que Amílcar Cabral chamou de “consciência mágica” da realidade. Que é uma espécie de ‘patologia social’ que, por osmose, tornar-se-ia também patologia política e que, como era previsível, viria a agravar-se com esta democracia guineense, que se revelou muito carente de cultura democrática. Pois, em vez de a classe política (a ‘elite política’) filtrar esta patologia socialmente enraizada (fruto de um défice educativo secular, crónico), e rejeitá-la com firmeza, sem hesitação, não é propriamente isso que, ela fez. Pelo contrário: deixou-se dominar por essa mesma “cultura inculta” (titulo de um conhecido livro de Allan Bloom) que tomo de empréstimo, para, em breves palavras, tentar descrever aqui a nossa situação, em particular, o estado da nossa economia, claro, em termos muito sucintos numa definição que parece simples, mas não propriamente simplista, incontroversa, bastante consensual, “desenvolvimento económico… resulta da combinação de taxas de crescimento económico elevadas e estáveis e a mudança estrutural do sistema produtivo tanto no domínio interno como nas relações com a economia internacional”.

Com base nestas premissas, tente o leitor testar, agora mesmo, a economia guineense, se ela satisfaz qualquer um destes critérios – passe a redundância: (i) de taxas de crescimento económico elevadas e estáveis e (ii) de mudança estrutural do sistema produtivo tanto no domínio interno (ii) como nas relações com a economia internacional. E, agora, tente por sua própria conta, responder à pergunta do meu amigo Allen Yero Embaló: “o que pensam estes nossos políticos quando falam de desenvolvimento? De uma economia que em vez de ciência, cada vez mais ciência; em vez de tecnologia, cada vez mais tecnologia incorporada no processo produtivo; que em vez de lançar, no mercado, produtos, cada vez mais produtos novos, diversificados, enfim, produtos com mais valor acrescentado, sim, em vez disso, o que é que nós temos? Entre outras coisas de menor impacto económico, o que temos é isto: uma resposta ‘primária’ ao próprio ciclo da natureza – sem investimento científico e zero aplicação tecnológica –, uma reação ao tempo de apanha e comercialização interna da castanha de caju.

Chegado o tão esperado “tempo de cadju”, procuramos alegremente ‘apanhar e despachar” a nossa castanha de caju, assim mesmo, in natura, para longe, para outros mercados, onde – lá, sim -, o ciclo de agregação de valor (acrescentado) realmente começa e recomeça… De facto, é um processo que vai descrevendo uma interdependência perfeita e perversa para a economia guineense: o destino do segmento guineense na economia internacional, em particular numa economia da castanha de caju que só é economia de desenvolvimento para os outros, não propriamente para nós. Dizer isto – sei-o bem -, é, com algum desconforto, estar a repetir um lugar-comum, uma banalidade completa, algo que todos sabem – sim, quem é que não sabe isso?

Discursos políticos, políticas públicas

Pensem, por favor! Por outras palavras, foi este o pedido feito por Allen Yero Embaló aos “nossos políticos”. Pensem de modo a se estabelecer uma ligação, uma relação de implicação entre os vossos discursos políticos e as políticas públicas. Que cuidem, pois, das premissas ou, como outros preferem dizer, que cuidem das condições ou pré- condições de desenvolvimento; prestem atenção aos indicadores e à sua série; olhem para as tendências econométricas, aquelas que são para continuar e promover, e outras que precisamos de conter, descontinuar, inverter; enfim, deem a devida atenção à métrica caracterizadora de um desenvolvimento bem entendido, isto é, razoavelmente sustentável.

Desenvolvimento sustentável, claro! Com aqueles predicados todos, que também são muito bem conhecidos: nem uma só criança fora da escola (pela universalização do ensino básico…) para que todas elas, tão cedo quanto possível, entrem cedo no elevador social, pois como é sabido, “a primeira e, provavelmente, a mais importante forma de inclusão social é a educação e o acesso ao conhecimento”. Nenhum jovem sem formação profissional para, assim, potenciar a sua empregabilidade. Nenhuma família guineense fora do sistema nacional de saúde – com unidades de saúde de base (isto é, de proximidade) em todas as circunscrições administrativas mais pequenas, nas secções; com hospitais, dignos desse nome, em cada um dos setores; com hospitais regionais confiáveis; enfim, com hospitais centrais de referência. Melhores salários para quem é trabalhador, e pensão de reforma, suficiente, para uma velhice decente.

Enfim, é a construção do estado social que a independência prometeu aos guineenses, e, mais ainda, o estado social que constitui também uma promessa da democracia e do seu inerente contrato social que, periodicamente, vamos renovando… em vão.

Economia política da independência, economia política da democracia

Mas como se pode conceber a construção desse almejado estado social sem, em primeiríssimo lugar, pensar a economia e mais ainda: sem a configuração de um novo modelo económico (pois este que nós temos, não serve, por tornar insustentável qualquer projeto de estado social), sim, um novo modelo económico que vai viabilizar e sustentar um estado social digno desse nome, mas quando?

Como o meu leitor percebeu, eu estou aqui a perguntar pela economia política da independência (onde ela esteve?) e pergunto, mais ainda, pela economia política da democracia (onde ela se encontra, hoje em dia?), uma vez que os direitos que a promessa da democracia consagrou, mantendo-se fiel à promessa fundadora da libertação nacional, terão alargado direitos e liberdades já presentes na constituição matricial da independência, claramente, aprofundando-os.

Na 1ª Edição da Conferência Internacional MADEM-G15 (1-2 de agosto último) levantei a questão da economia política da democracia, que nós ainda não temos. Mas já se passaram 41 anos desde que publiquei no Jornal Nô Pintcha um artigo intitulado “Que futuro para nós?”, corria o ano de 1981, era eu um jovem ainda sem formação universitária, mas muito apreensivo pelo rumo económico que o nosso país estava a preparar-se para tomar. Atormentava-me aquela amnésia que rapidamente parecia ter-se apoderado da classe política de então, “nha garandis de PAIGC”, que tão cedo, menos de quatro anos depois de um memorável congresso (realizado em novembro de 1977) ter definido o primeiro (e que seria o último) conceito estratégico de desenvolvimento económico da nossa terra, que resumo a seguir.

“No que respeita ao problema do desenvolvimento, para nós há apenas dois modelos: o que reproduz o subdesenvolvimento e o que rompe com as estruturas básicas do subdesenvolvimento e permite a criação de uma economia nacional independente” (…)

Não há desenvolvimento sem vontade política e firme determinação de transformar as nossas realidades… Indústrias : pescas, madeira, agroindústrias (…) A agricultura e a indústria articulam-se num desenvolvimento equilibrado – a agricultura com base e a indústria como dinamizadora do seu desenvolvimento…”. Pois bem, muito cedo, já eu tinha soletrado tudo isso, e mantinha-o bem presente no meu espírito ontem, aliás, tal como hoje em dia.

Sucedeu, entretanto, que em 1981, discutia-se acaloradamente o modelo de desenvolvimento económico, e, nessa perspetiva, não tardaria muito para que a liberalização comercial se ‘impusesse’, consensualmente, como uma necessidade. Sem dúvida uma reforma importante. Mas parar nessa reforma comercial, foi desastroso. E não se ficou por aí – pela questão comercial -, pois, outras opções foram postas em cima da mesa, que também começaram a ser discutidas.

Na altura, considerou-se, erradamente, como opções alternativas a opção pela agricultura ou opção pela indústria, como se o caminho da modernização da agricultura não passasse precisamente pela agroindústria, pela “agricultura como uma forma de indústria”, na expressão de Amílcar Cabral, um político distinto e um engenheiro também distinto. Mas a agroindústria que, acabaria, por não se desenvolver, na verdade, também consentia uma “alternativa”, desastrosa é certo, mas foi mesmo aquela que se implantou na Guiné-Bissau: um modelo de subdesenvolvimento intenso, da mais severa monocultura dos últimos cento e cinquenta anos, um modelo económico que, estrategicamente, continua a empobrecer a Guiné-Bissau, e que parece ainda não ter um fim à vista.

A questão que, nessa altura, já se punha e que, hoje, continua a pôr-se, pode ser resumida numa frase muito curta: como conceber o desenvolvimento económico da Guiné-Bissau fora do paradigma industrial? A Suécia, talvez, o único parceiro verdadeiramente estratégico que, até hoje, tivemos, não duvidava, nessa altura, de como responder à essa pergunta.

Enfim, passados mais de três décadas de vigência de um modelo económico francamente mau, não faltam pessoas felizes e contentes com o potencial recorde de exportação da castanha de caju, imagine-se, sem valor acrescentado nacional! Pior ainda: com muito arroz importado a servir de moeda de troca “contra” a castanha de caju guineense. É tempo de mudar.

Bissau, 20 de outubro de 2022

F. Delfim da Silva

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