Boé da independência esquecido no tempo

Triste mas não podemos cansar de reportar sobre a situação penosa em que vivem os habitantes do setor de Boé, berço da independência nacional, mas esquecido no tempo. Hoje estamos a assistir as consequência de ignorância, desprezo e abandono a que foi submetido o setor de Boé, situado no sudoeste da Guiné-Bissau.

Jurídica e administrativamente, Boé pertence à Região de Gabú, leste do país, com um estatuto especial, por ser o embrião do Estado da Guiné-Bissau, onde foi proclamada, unilateralmente, a independência do país em 24 de setembro de 1973 em Lugadjol.

Boé dista de 310 km da capital Bissau e com uma população de cerca de 12.000 habitantes (Censo 2009), distribuídos em mais de 85 tabancas e com uma superficie de 3.200 quilómetros quadrados, mas pouco povoado devido às dificuldades de vida que se regista nesse setor, aliada ao seu abandono pelo Estado da Guiné-Bissau.

A maioria da população abandonou as suas localidades em busca de melhores lugares para a sobrevivência, motivado pelo isolamento, falta de estradas e vias de comunicação e bloqueada sobretudo pelo Rio Corubal, a travessia de Tchetché que faz ligaçãodo setor com o resto do país.

Em Boé tudo falta. Não há transportes públicos regulares para garantir a mobilidade das pessoas, nota-se ausência quase do Estado, fraca dinâmica comercial, insuficiência de serviços de saúde de qualidade, da educação, água potável, energia e telecomunicações.

Pode-se até dizer que o setor de Boé, que faz fronteira com a vizinha República da Guiné-Conakry, está excluído do atual contexto de globalização, uma vez faltam tudo o que é essencial para um desenvolvimento e ainda com poucas perspetivas.

Essa situação levou com que o setor esteja progressivamente a ser despovoado, onde a população está a refugiar-se em busca de lugares mais adequados para a sobrevivência. Muitos deslocaram para o setor de Pitche e outros em direção a Gabú e Bissau.

Muitas aldeias junto da estrada que liga Bissau-Gabu são povoadas pelas populações oriundas do setor de Boé que vieram fundar suas tabancas em aproximação as zonas mais dinâmicas e de fácil acesso.

Riscos de vida em Boé

O setor de Boé é cada vez um risco para a sobrevivência humana, devido às enormes dificuldades com que enfrenta em vários níveis. Como referimos a trás, é bastante isolado, sobretudo na época das chuvas onde a ligação do setor com o resto do país é totalmente cortada.

A estrada que liga o setor com a sede regional em Gabú torna-se intransitável entre a seção de Candjaidude e a travessia de Tchétché, que inunda completamente de julho a novembro, cortando a circulação de viaturas. Só é possível transitar esta localidade a pé numa distância de mais de 14 quilómetros que compreende logos e lagoas, um autêntico bas-fond.

A própria travessia de Tchétché corta-se nesse período devido ao aumento do caudal da água, impossibilitando a mobilidade da única jangada que faz ligação nesse rio e que, também, está em estado avançado de degradação, não podendo aguentar a forte corrente de água que se faz sentir nesse período de chuvas.

Durante esse período em que a jangada não consegue operar no rio, a travessia é assegurada por canoas a remo, o que constitui alto risco para os passageiros. As pessoas mais afetadas com esta situação são as mulheres grávidas, crianças e doentes que procuram serviços de saúde para assistência médica.

Além de riscos de vida, quebra também a dinâmica comercial do setor com o resto do país, refletindo na vida social e económica dos seus habitantes, razão pela qual, urge tomada de medidas para atenuar esta situação e minimizar o sofrimento daquela população que deu grande contribuição na luta pela independência nacional.

Exemplos notáveis dessa situação

Em 2017, ocorreu acidente sobre rio Tchétche em que uma viatura cheia de mercadorias descarrilou-se e caiu no rio. Em 2020 o cenário repetiu-se no mesmo local onde mais uma vez uma viatura de mercadoria caiu sobre o rio e no dia 18 de maio 2022 outra viatura cheia de mercadoria afundou-se com a jangada no mesmo local.

São situações que por si só chamam atenção a quem de direito para tomar disposições necessárias antes que venha o pior, tendo em conta que são vidas humanas que estão em risco.

Caraterísticas e particularidades de Boé

O setor de Boé tem uma caraterística particular do resto do país. É constituído por terrenos elevados (colinas), muitas pedras, rios e riachos, ecossistemas diferentes, com uma população totalmente camponesa que dedica a prática de agricultura etinerante (pam-pam), pesca artesanal, apicultura, cria de pequenos ruminantes, caça e exploração de recursos florestais que constituem a base da economia da população.

O comércio é pouco desenvolvido devido à falta de estradas em condições para facilitar a mobilidade das pessoas e escoamento de produtos. As motorizadas e bicicletas são os meios de transportes mais usados, e é constituído por uma população maioritariamente muçulmana.

Sistema de comunicação

O sistema de comunicação, até bem pouco tempo, era inacessível em várias zonas do setor, onde as redes telemovel das duas empresas operadoras do país (MTN e ORANGE) não conseguem cobrir a totalidade da zona em pleno século XXI, caraterizado pela globalização e evolução tecnológica.

Até principios de 2004 não havia cobertura de estações de rádio, apenas com enormes dificuldades se conseguia sintonizar em algumas localidades do setor a Rádio Difusão Nacional. A população sintonizava mais a Rádio Televisão da Guiné-Conakry e até então fazem mais trocas comerciais com este país vizinho e muitas aldeias junto à linha fronteriça com a República da Guiné usam mais a moeda Francs Guiné.

Em meados de 2005, o setor viu-se brindado com uma estação emissora “a Rádio Comunitária e Rural Colinas de Boé” adquirida e instalada pela ONG- DIVUTEC em parceria com a Federação FAABADE Boé e financiada pela ICCO da Holanda.

Com a instalação e arranque das emissões dessa estação emissora na frequência de 107.3 MHZ de caracter rural e comunitária, quebrou-se consideravelmente o isolamento dos habitantes do setor em termos de comunicação, passando a usufruir de um importante instrumento de informação, comunicação, partilha, educação e sensibilização com programas do desenvolvimento comunitário, retratando sobre a vida quotidiana da população.

Os principais programas difundidos nesta Rádio estão intimamente ligados aos aspectos sócio-educativos, virados ao cunho rural, nomeadamente agricultura, pecuária, saúde, educação, direitos humanos, cidadania, juventude, cultura e desportos e, sobretudo, a problemática da mulher e criança.

A questão do Islão, de histórias e contos populares são também espaços muito apreciados nesta estação emissora que, também, dedica um espaço muito especial a animação cultural, com músicas tradicionais locais e afros. Os comunicados são apresentados em crioulo e em dialectos locais (fula e mandinga).

Concernente aos serviços de saúde, importante salientar que o setor não dispõe de serviços eficientes e nem de infraestruturas adequadas, obrigando os habitantes fazer recurso aos centros mais próximos com melhores condições como os hospitais regionais de Gabú e Bafatá, dos centros de saúde dos setores de Pitche e Galomaro Cossé.

Não se pode terminar de falar sobre a situação difícil em que vivem os habitantes do setor de Boé, que não mereciam esse trato, dado ao estatuto que o setor representa no contexto histório da Guiné-Bissau, vamos terminar aqui para relembrar às autoridades do país sobre a necessidade de reconhecer o papel e a contribuição que este setor deu para a libertação do país.

Toda a atenção é pouco, pois, Boé pode ser destino turistco da Guiné-Bissau para gerar receitas ao país.

Gritos de socorro

Interpelada pela reportagem de Nô Pintcha, a presidente da Federação camponesa do setor (FAABADE Boé), Sadjó Culubali lamentou a situação em que vivem os habitantes do setor e exorta as autoridades a prestarem mais atenção àquela população.

Disse que Boé faz parte também do território da Guiné-Bissau e por inerência, um setor histórico na luta de libertação nacional que desempenhou um papel importante no processo de luta que conduziu o país à independência, onde foi mesmo proclamado o Estado soberano.

Sadjó Culubali enalteceu o engajamento da população do setor na luta pelo desenvolvimento social, económica e cultural do país, mas sentem-se a falta de apoio do Estado. Realçou o papel das organizações e projetos de desenvolvimento que apoiam os esforço da população na sua luta pelo empoderamento económico e social, mas disse que o Estado também é parte responsável pelo resgate da população da pobreza em que está mergulhada, pela ausência de infraestruturas básica de desenvolvimento, nomeadamente estradas, meios de transporte, energia, serviços de saúde de qualidade, educação e água potável.

“Não merecemos esse trato em como se não somos guineenses. O primeiro astear da bandeira e enotoar do hino nacional da Guiné-Bissau independente aconteceu em Boé, concretamente na localidade de Lugadjol, onde em 24 de setembro de 1973, o então presidente da Assembleia Nacional Popular, João Bernardo Vieira (Nino), leu o texto de proclamação unilateral do Estado da Guiné-Bissau. É um marco histórico que deve ser valorizado e refletir no reconhecimento do setor pelo seu estatuto e papel edificador da soberania nacionala”, sublinhou Sadjó Culubali.

A presidente da Federação FAABADE Boé recordou ainda que a casa da Independecia, situada nas preferias de Lugadjol encontra-se em estado de abandono, quando devia ser um muséu de referência histórica do país.

Portanto, disse que ninguém consegue descrever a situação em que vive o setor de Boé, mas com estas considerações, espera que as autoridades do país possam estar alertadas sobre o setor e tomar disposições necessárias para resgatar a sua população.

Concluiu, sublinhando que o acidente de viação registado esses dias no Rio Tchéché é um exemplo inequívoco que chama a atenção de todos para adoção de medidas que ponham termo a situações de género e, sobretudo, nesse período de chuvas onde a situação tornará pior, colocando o setor em total isolamento.

Djuldé Djaló

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