Inédito ter visto, como nós vimos, um Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA) a elevar-se tal como se elevou o General Biagué Na N’Tan na compreensão correta do imperativo constitucional que obriga as Forças Armadas da nossa Nação. Será preciso levar mesmo a sério o juramento à Bandeira Nacional que cada nova geração de soldados da nossa República faz – um juramento regular que vai selando o seu compromisso de fidelidade intransigente à Constituição -, para devidamente se perceber a lição do General Biagué Na N’tan aos soldados da Pátria.
De facto, o discurso convincente, isto é, bastante bem argumentado que o General Biagué Na N’tan articulou e, sobretudo, a sua atitude de firmeza castrense de comando face ao frustrado “golpe de 1 de fevereiro” foi um grande serviço que ele prestou à Nação. E decorrente desse seu protagonismo, o General honrou, de facto, as Forças Armadas da República. De passagem, ainda teve a coragem de criticar severamente as graves ineficiências do próprio setor da Defesa (Justiça Militar incluída), um gesto que, contendo elementos de autocrítica, isto é, de grande humildade pessoal, foi, seguramente, mais uma atitude que muito o dignificou.
Ouvindo o CEMGFA a falar, um jovem guineense, estudioso, enviou-me logo esta mensagem muito significativa: “Esse senhor merece estátua. General Biagué Na N’tan”. Perguntei-me a mim mesmo, mas por quê? E encontrei a seguinte resposta: porque ele não hesitou,”i ca coitandá”, tomou posição, distinguiu-se claramente na defesa da determinante constitucional da ética militar, esse ethos que foi várias esquecido, aliás, para grande desgraça de uma instituição castrense – a nossa – que, ontem, gozou de grande e merecido prestígio no país e, mesmo, além fronteiras.
Nó bai… Mas ficará muito melhor, talvez, ‘pegar’ na proposição que titula este artigo (que é, passe a redundância, uma frase afirmativa), e convertê-la numa outra coisa, numa frase interrogativa que vem a ser esta: a atitude do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, General Biaguê Na N’Tan, representou mesmo um paradigma novo, uma mudança do velho para o novo paradigma político? Resposta: sim, mas…
E passo a explicar-me assim: para começar, reitero a resposta que já dei: “sim”. Mas, atenção: esse meu “sim” vem muito condicionado, é hipotético. Daí a segunda parte da frase: “…mas” só na condição de sermos realmente capazes de consolidar este paradigma novo, ainda emergente, que, hoje em dia, exprime esperança, desejo, uma promessa. Na verdade, é já um novo começo, mas, bem entendido, é ainda apenas um começo. E porque tudo o que começa, quase sempre, provoca resistência, então, esse paradigma novo (que pareceu-me ver representado na postura de Estado que exibiu o CEMGFA Biagué Na N’tan), precisa muito ser interiorizado, consolidado, vivido como uma cultura, uma vez que, diferentemente do que andam a dizer, a democracia nunca é produzida e reproduzida apenas pelo ‘mecanismo’ da urna e o seu veredito. Sim, a democracia não vai ‘sem urna’ – sem escolhas livres e plurais -, é verdade. Mas ela é muito mais do que a arena para uma fanática luta, de vida ou morte – de cumá ô cuma – pelo poder! Não, não é bem isso. É, ou deve ser também – ou melhor: ela deve ser primariamente – uma cultura. A cultura da democracia: ética e política assente sempre na liberdade e na dignidade humana, na igualdade e na justiça.
1 de fevereiro de 2022
O “golpe de 1 de fevereiro” é, claramente um marcador. Uma data que tem carga simbólica suficiente para dividir a nossa turbulenta história política mais recente. Para segmentá-la doravante num “antes de 1 de fevereiro” e num “depois de 1 de fevereiro”.
Mas vamos à notícia: um grupo fortemente armado resolveu fazer uso da força, da violência – cujo monopólio legítimo (segundo o autorizado Max Weber) só o Estado constitucional detém. E esse grupo armado – como o sublinhou muito bem o General Biagué Na N’tan – agiu contra o Estado legítimo, uma tipificação que não parece levantar qualquer dúvida. Mas o “comando operacional de 1 de Fevereiro” não conseguiu cumprir a “ordem de missão” que provavelmente um mandante lhe determinou, pois, parece altamente improvável que esse ‘empreendimento’, que foi concebido para decapitar o Estado, não tivesse propriamente um mandante.
… E agora o balanço. O assassínio do Presidente da República não se consumou. Ele saiu fisicamente ileso. Mas, mais uma vez, um golpe militar deixou no chão um coágulo de sangue, muita dor nas famílias e nos amigos, tantos guineenses em estado de choque, demasiadas interrogações no ar, inação incompreensível dos órgãos ‘competentes’, enfim, uma ‘mancha’ que a Guiné-Bissau não merecia voltar a carregar, uma nódoa que veio, de novo, envergonhar os guineenses. Fizeram isso, mas com que direito?
A propósito desse “golpe de 1 de fevereiro” disse um observador, e disse-o muito bem: “depois de dois anos de um percurso internacional de indiscutível sucesso, o golpe frustrado de 1 de fevereiro era para lançar a Guiné-Bissau novamente para o lixo”. Enfim, ele apresentou-nos as suas condolências. E desejou-nos mais sorte. Oxalá.
… e, enfim, pensar e agir: uma urgência
O tempo é de reflexão e de ação. Porque está em cima da mesa um ponto realmente crítico, que se prende com questões muito básicas, essenciais: questões de Estado, da ordem estatal, do estado de ‘saúde’ política, física e ética do próprio Estado guineense como garantidor primordial de segurança pública, um bem comum. Também, associado a ele, a questão da democracia é evidentemente uma questão subordinada, mas, ainda assim, ela é incontornável porque indissociável – por assim dizer – da (re) construção do nosso Estado de direito democrático.
Hoje, tal como ontem, a construção política, técnica e ética da democracia, continua a pôr-se. E põe-se hoje, talvez, com uma intensidade ainda maior do que antes: dos princípios democráticos e sua declaração; da luta pelo poder e seus limites éticos; da promessa da própria política e seus valores; enfim, do papel dos partidos e dos seus líderes, da comunicação social e seus agentes (os jornalistas), dos intelectuais e da sua responsabilidade. Contudo, persiste uma pergunta difícil: mas será que a Guiné-Bissau, com os seus mais de cinquenta partidos, tem quadros políticos em quantidade e qualidade suficientes – é a isso que se chama “massa crítica” -, à altura deste grande desafio?
Bissau, 23 de fevereiro de 2022.
Fernando Delfim da Silva