A “Operação Mar Verde” e o terramoto que fez cair o Império

Num texto que dediquei à memória do Comandante Paulo Correia, escrevi, de Nova Iorque, a 7 de agosto de 2020, o seguinte:

“O ano de 1970 tinha terminado de maneira algo estranha, deixando no ar, entre os combatentes, tantas apreensões como esperanças. O inimigo tinha conseguido penetrar – como então se dizia – o próprio “santuário” do PAIGC. Invadira Conacri.

De facto, avaliado pela grelha da sua repercussão politica, militar e diplomática, bem como pela complexidade das respostas que suscitou, o acontecimento que foi a “Operação Mar Verde” de 22 de novembro de 1970 – a agressão à República da Guiné levada a cabo por uma força expedicionária portuguesa (tropa colonial de elite) – marcaria novamente um ponto de viragem.

Tal como o “Massacre de Pindjiguiti”, 3 de agosto de 1959 -, agora, num outro contexto (a “Operação Mar Verde”) marcaria também um ponto de viragem histórica. Nada mais seria como era antes.

Amílcar Cabral que agia como homem de pensamento e pensava como homem de ação não tardou a perceber o que era preciso fazer, que caminho tinha de ser percorrido. Ele não tinha dúvidas. Tanto assim que o planeamento estratégico (político, militar e diplomático) que Cabral delineou, e que direção do PAIGC (na altura, o Conselho Superior da Luta) homologou logo no ano seguinte (em agosto de 1971), lê-se, ainda hoje, como um manifesto de inteligência e de grande vontade política. Que apontava o caminho, meticulosamente e com segurança: rumo à proclamação unilateral da independência.”

Agressão à República da Guiné, 22 novembro de 1970

”Operação Mar Verde”. Missão

(a) Intervir num “golpe de Estado” em Conacri. Depor o Presidente Sékou Touré, derrubar o seu regime e, assim, deixar o PAIGC sem a sua retaguarda física mais segura;

(b) Decapitar o PAIGC: liquidar ou prender Amílcar Cabral;

(c) Resgatar 26 prisioneiros portugueses de guerra.

Eis, pois, a missão que foi atribuída a uma força militar de mais ou menos quatrocentos operacionais, capitaneados pelo Comandante Alpoim Calvão. Como se percebe, só as missões (a) e (b), tomadas em conjunto, continham um considerável potencial estratégico, podendo, em caso de sucesso, implicar pelo menos a curto-médio prazo, mudanças profundas na conjuntura política em evolução. Mudanças de fundo que teriam derivado da instalação, hipotética, de um governo hostil à luta armada de libertação nacional protagonizada pelo PAIGC.

Ora, falhando, no terreno, essas duas missões cruciais, (a) e (b), a “Operação Mar Verde” já não podia ter êxito. Chegara o tempo de contar os prejuízos, porém, o Comandante Alpoim Calvão preferiu apressar o seu relatório, que dourou com muitas fantasias de heroísmo seguidas de propostas para que os seus subordinados recebessem louvores e condecorações por atos de bravura praticados em combate no decurso da “Operação Mar Verde”.

Mas um facto tornara-se indisfarçável: o impacto internacional da “Operação Mar Verde” foi desastroso para Portugal, e isso reduziu mais ainda, a já muito pouca margem diplomática de interlocução internacional do governo português. Com efeito, nunca mais o governo de Portugal se recuperaria – nem interna, nem externamente – do fracasso estratégico que foi a “Operação Mar Verde”.

Aos agressores, restou, se assim se pode dizer, um único “troféu”, um ´saldo positivo´ quase irrisório, sem aquele perfume que é próprio de uma vitória (militar ou de qualquer outra natureza) que fosse duramente alcançada, o que, no caso em apreço, esteve muito longe de ter acontecido. Mas que saldo foi esse que ´sobrou´ para os invasores exibirem? Os vinte e seis prisioneiros de guerra que o PAIGC mantinha encarcerados num estabelecimento prisional e que foram libertos e trazidos de Conacri para Bissau.

Como facilmente se percebe, nesse resgate, por assim dizer, ´humanitário´, não poderia ter havido nada de propriamente estratégico, nada que mexesse, por mínimo que fosse, na relação de forças no teatro da guerra, menos ainda que, nos areópagos internacionais, suscitasse qualquer notação que acrescentasse credibilidade à política portuguesa, antes pelo contrário.

Enfim, esse ´troféu´ que os agressores trouxeram de Conacri – os vinte e seis prisioneiros libertos -, vai talvez ser recordado, quando muito, como uma nota de roda pé, lá no fundo de uma página, na narrativa histórica dos anos do fim do império. Mas o que a história continuará certamente a reter, é o enorme passivo para o lado português que efetivamente representou a “Operação Mar Verde”.

Tratou-se de uma operação mal planeada, para cuja execução um líder político já muito enfraquecido, o Prof. Marcello Caetano, Chefe de Governo, aceitou dar luz verde, sem ter medido muito bem nem as escassíssimas hipóteses de sucesso militar, menos ainda a enorme probabilidade de tal aventura vir a produzir, como realmente produziu, um ricochete (boomerang) cujas consequências políticas e diplomáticas para o governo português seriam devastadoras. Marcello Caetano deixara-se convencer pelo General Spínola, um oficial de Cavalaria que quis tornar-se “salvador da pátria” na esperança de vir a ser cooptado, pelo regime, como candidato (ganhador) às eleições presidenciais de 1972. É para isso que ele ´tinha´ de ganhar a guerra da Guiné, e segundo Carlos Fabião, a “Operação Mar Verde era o último trunfo para ganhar a guerra”.

Mas o pior ainda estava para vir…

A operação. O fracasso

Até se de dar o desembarque no porto de Conacri, e, já em terra, com as movimentações encetadas nos meandros da cidade, enfim, na execução da primeira fase das operações, que consistiu numa rápida projeção de forças pelos vários alvos, bem e, por vezes, mal circunscritos na quadrícula da cidade, toda essa parte de articulação dos dispositivos e poder de fogo logo ativado – reconheçamo-la -, foi claramente um sucesso militar dos agressores. Que só confirmaria as elevadas qualidades de um contingente militar, aliás, formado por uma elite de guerra muito bem preparada: de Comandos, de Fuzileiros Especiais e de Para-quedistas, além de também integrar numerosos cidadãos da Guiné-Conacri, opositores do regime de Sékou Touré.

Mas voltemos ao essencial. Se os alvos estratégicos a atingir, isto é, aquilo que definia propriamente o objetivo político dessa operação militar, afinal, estavam ausentes (o Presidente Sékou Touré e o Secretário Geral Amílcar Cabral não se encontravam em Conacri), também esteve, por assim dizer, fora de radar, um outro alvo militar crucial:

Os Mig´s (os aviões de combate) que, impreterivelmente, tinham de ser destruídos no solo, lá onde se esperava que eles estivessem estacionados – no aeroporto de Conacri – para que, assim, fosse garantido o “domínio do ar”. Só que, para grande azar dos agressores, os Migs estavam posicionados num outro aeroporto, longe de Conacri, talvez, em Labé. Constatação essa que imediatamente destruiu a previsão inicial, invalidou, assim, uma premissa fundamental sem a qual os objetivos estratégicos da “Operação Mar Verde” dificilmente poderiam ser atingidos.

Com os aviões de combate (os Migs) ´agora´ na posição de poderem ser usados a qualquer momento contra a ´invasão´ – na hipótese plausível da descolagem acontecer a partir do aeroporto desconhecido onde estivessem -, essa ameaça tornou-se de tal modo real que, teria sido quase um suicídio, desconsiderar o risco associado a uma tal eventualidade. Enfim, a iminência de poder acontecer o pior,

alterou completamente a situação no terreno, a equação militar inicial deixou de ser válida, o impacto psicológico nos homens, nomeadamente, o medo e o stress ditaram-lhes, imediatamente, a adoção de uma lógica de retirada para sobreviver, de voltar ao porto “quinti-quinti”, tomar os botes rápidos, alcançar as lanchas fundeadas ao largo de Conacri e abandonar, quanto antes, as águas territoriais da República da Guiné. Era preciso safar-se, e, de facto, os agressores safaram-se. E foi assim que, em termos estritamente operacionais, viria a terminar a “famosa” Operação Mar Verde: numa retirada meio ordenada e meio em debandada…

Consequências

Brutal e profundamente desafiado, o PAIGC mostrou estar à altura de responder cabalmente à ´provocação´ que, de facto, representou a “Operação Mar Verde”. Porque, afinal, o PAIGC tinha homens (recursos humanos), dispunha de um conceito estratégico bem elaborado, contava com um estado-maior de grande qualidade militar, tinha equipamento bélico com grande poder de fogo, e era comandado por um

líder insuperável. Em síntese: o PAIGC provaria dispor de uma grande capacidade de escalada militar, de construção politico-institucional e de interlocução internacional (leia-se: de ação diplomática), fazendo tudo convergir para moldar o desfecho político pretendido: a proclamação do Estado da Guiné-Bissau.

Para fechar este artigo, que não pretende ser exaustivo, basta revisitar parte da analítica de Amílcar Cabral, os princípios e os conceitos com que operou, e a construção política e institucional que ele desencadeou com grande determinação e proficiência. Vamos escutá-lo. É já a seguir:

Agosto de 1971, 9 meses depois da “Operação Mar Verde”

“Tenho a certeza de que, hoje, os combatentes das nossas Forças Armadas, em geral, estão a bater-se com muito mais entusiasmo e muito mais coragem desde novembro, pois a agressão à República da Guiné despertou-nos muito e fez-nos sentir que é preciso avançarmos depressa. Mais tarde veremos as

importantes consequências que vão resultar disso” (…)

Em todas as circunstâncias devemos estar prontos para sermos solidários com os nossos irmãos da República da Guiné (…). Mas para melhor podermos apoiá- la devemos reforçar o nosso trabalho e a nossa luta, e reduzir as muitas dependências existentes para, o mais depressa possível, libertarmos totalmente a nossa terra” (AC, in A Luta criou raízes, p.7, 8, agosto de 1971)

Dezembro de 1971, 13 meses depois da “Operação Mar Verde”

“De acordo com as decisões tomadas pela reunião do Conselho Superior da Luta realizada de 9 a 17 de Agosto de 1971, sob proposta devidamente baseada do Secretário-Geral do Partido e após amplo debate, devemos tomar imediatamente, toda as as medidas necessárias em vista da criação, no mais curto prazo possível da 1ª Assembleia Nacional Popular da Guiné”.

A Assembleia Nacional Popular da Guiné (ANP) é criada na base do princípio segundo o qual o poder vem dom povo e deve servir o povo. A ANP é o órgão mais elevado do Estado nacional que o nosso povo forjou na luta e está em vias de desenvolver e de consolidar cada vez mais. É o órgão supremo da soberania do nosso povo na Guiné, conquistada ao preço de uma luta heroica e cheia de sacrifícios, e de que é já detentor na maior parte do nosso território nacional” (Bases para a criação da Assembleia Nacional Popular…, 3 de Dezembro de 1971, AC, Unidade e Luta 2, p.249)

1972, 8 de Janeiro, 14 meses depois da “Operação Mar Verde”.

“Foram eleitos pelas massas populares os números seguintes de conselheiros reginais e de representantes à ANP: Conselheiros regionais, 273;

Representantes à ANP, 99 entre os quais 91 pelos Conselheiros Regionais eleitos, 5 pela União Nacional dos Trabalhadores (UNTG) e 3 pela Conferência Nacional dos Jovens e Estudantes.

Foram designados, a título provisório, em representação das zonas ainda ocupadas e efetivamente controladas pelas tropas de ocupação, 21 representantes à ANP, sendo 3 por Bafatá, 4 pelas Ilhas Bijagós, 9 pela Ilha de Bissau, incluindo a capital, e 5 pela Ilha de Bolama, incluindo a cidade. (…)

A Assembleia Nacional do nosso povo na Guiné reunir-se-á na sua primeira sessão em 1973, no nosso país, desde que os preparativos para a sua reunião estejam finalizados. Ele cumprirá então a primeira missão histórica que lhe compete: a proclamação do nosso Estado nacional, a promulgação da Constituição e a criação dos órgãos executivos correspondentes” (Amílcar Cabral, O Estado da Guiné-Bissau, Unidade e Luta 2, p.246).

Enfim, era o fim à vista do império colonial, o terramoto que a “Operação Verde” tinha precipitado.

Bissau, 22 de novembro de 2021

Fernando Delfim da Silva

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