Cansados dos mesmos discursos, dos mesmos rostos e símbolos, não querendo a repetição do “mais do mesmo”, fartos de promessas vãs, os guineenses, afinal, queriam mesmo mudar, experimentar coisa diferente, outra coisa. E fizeram a mudança acontecer, surpreendentemente. Livremente. Democraticamente.
A surpresa da mudança
Existe toda uma crónica de como as coisas, então, se passaram. “Não, não vai ser! Ele não tem nenhuma hipótese”. Realmente, não foi antecipado por ninguém. Que este cidadão guineense relativamente jovem, ainda na faixa dos 40 anos, sem nenhum tirocínio partidário notável – nenhuma carreira feita nas “Jotas” (juventudes partidárias), menos ainda nos próprios partidos “sistémicos” (reconhecidos como partidos do arco da governação, nomeadamente, o PAIGC, o PRS…), formações políticas acostumadas a assegurar, seja por via eletiva ou por cooptações ‘criativas’, a ocupação do Estado pelos seus quadros -, sim, ninguém terá “adivinhado” que, primeiro, o candidato Úmaro Sissoco Embaló acabaria por vencer aquelas eleições de 2019, uma disputa eleitoral muito renhida, com todos os “pesos pesados” alinhados na corrida presidencial, que todos eles perderiam, claramente.
Mas muito menos ainda se admitia que o magistério presidencial de Úmaro Sissoco Embaló haveria de ter o sucesso que ele está a ter. Antes pelo contrário: quem é que não lhe vaticinou um fracasso muito rápido, retumbante, a que se seguiria uma onda de frustração geral que haveria de atingir todos os guineenses?
Muito provavelmente é nisso mesmo, nesse choque de perceções, resultante de um prognóstico considerado fortemente plausível, quase “infalível”, mas que, contrariamente a todas as expectativas e previsões, não se concretizaria, sim, é nisso que parece residir um visível constrangimento psicológico, essa indisfarçável dificuldade também intelectual de apreciar as coisas como elas realmente são. Se parecia incrível, claro que parecia. Mas a verdade é que o nosso país mudou, está a mudar para melhor, nitidamente.
O que, bem entendido, não quer significar que foram três anos completamente imaculados, sem erros nem omissões, anos milagrosos – nada disso. Aliás, os passivos acumulados – gerados por um modelo económico errado e, resultante dele, um diagnóstico social muito preocupante –, enraizaram, ao longo dos anos, problemas estruturais tão complexos que só por milagre poderiam resolver-se em três anos. Mas o facto maior – esse -, permanece: a Guiné-Bissau está a mudar, dentro de si; e está a mudar, na sua envolvente externa. No bom sentido.
Bem comum
Do que retenho na minha memória dos últimos cinquenta e poucos anos, poucos triénios terão sido diplomaticamente mais produtivos do que este, que vem balizado entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2023.
À exceção do triénio 1971-1973 – por ser um caso à parte, verdadeiramente fora de série que, aliás, atesta da genialidade de Amílcar Cabral –, realmente não vejo como não destacar e não aplaudir os progressos que nos últimos três anos foram alcançados, e que constituem, sem dúvida, um bem comum guineense. São progressos que, pouco a pouco, vão sedimentando um património de autoestima patriótica, e é precisamente por isso que eles representam um valor que precisamos de acarinhar e preservar, não permitindo, nomeadamente, que guerrilhas partidárias rebaixem a sua real dimensão de uma verdadeira res pública, uma “bandeira” nacional.
Diplomacia e seu retorno
Engana-se quem considerar que diplomacia – política externa em ação – é, como muitos dizem, coisa de “fora”, uma perspetiva falsíssima que implicaria concluir que diplomacia é praticamente um luxo, algo dispensável. A verdade é que ela é coisa “de dentro”, muito “de dentro” mesmo, porém, que tem de se exteriorizar. Que, por assim dizer, se externaliza, mantendo o seu foco – enquanto não trair o seu conceito -, orientado para a construção de um ordenamento político externo que pereniza a segurança e a paz e, do mesmo passo, que promova a cooperação internacional para o desenvolvimento, objetivos esses que seriam inalcançáveis sem a comunidade internacional dos Estados que os condiciona e, ao mesmo tempo, os potencia.
Diplomacia e seu retorno – que é o tópico deste ponto – lança, assim, um brevíssimo olhar para a diplomática guineense, para a sua suscetibilidade de gerar retorno que, aliás, tem vindo a concretizar-se, e ainda bem que tem sido assim. Até porque – como já foi dito – não se faz diplomacia por diplomacia, como se tivesse de ser uma construção mais ou menos abstrata, decorativa ou retórica, incapaz de se substanciar. Ao contrário: a diplomacia só pode fazer-se – e, talvez, muito mais ainda no nosso caso -, para projetar uma agenda própria de desenvolvimento, dando assim curso a um exercício soberano de dar-e-receber.
Neste percurso diplomático – que nos últimos três anos tem registado um inegável sucesso, aliás, é um sucesso que se pode objetivar e medir –, a Guiné-Bissau tem dado de si o seu melhor no relacionamento que desenvolve com países e entidades intergovernamentais com os quais partilha valores e interesses. Reciprocamente, o nosso país tem sido compensado com a solidariedade de países e instituições relevantes. E é, assim, que vai reconstruindo e aumentando o capital diplomático da sua política externa: dando e recebendo.
Será necessário falar da requalificação urbana em Bissau? De obras de infraestruturação rodoviária em curso muito para lá da cidade-capital, que vão aproximar nossos territórios entre si (setores e regiões), densificar a mobilidade social à escala nacional, reforçar a integração do nosso mercado e ‘aquecer’ a economia, enfim, promover a coesão territorial e social do nosso país? Dessa aposta na mobilização de recursos externos necessários para viabilizar políticas públicas de enorme utilidade social, impactantes já, a curto prazo, mas que são obras já em curso, e para durar? Será necessário ainda referir outros ganhos, que não são fisicamente tangíveis, ganhos de uma grande importância para o presente e o futuro do nosso país? Por exemplo, a reconstrução da própria identidade externa do Estado guineense.
IV Uma travessia no deserto
Não há ninguém que ainda não se lembre da maneira humilhante como, nas últimas décadas, o Estado guineense era identificado no seio da comunidade internacional. Abundaram, nesses anos muito difíceis, adjetivações que foram todas formuladas para responder à uma única pergunta: a Guiné-Bissau hoje, o que é? Ou seja, em que se tornou? Como ela se se identifica?
Tratava-se de descrever e cristalizar a nossa má reputação, de fixar os termos de uma identidade política e diplomática completamente degradada – a indisfarçável falência de um Estado que chegou, outrora, a suscitar respeito e mesmo admiração no mundo. Mas o que é isso que insistentemente diziam de nós nestas últimas décadas que, para os guineenses, se tornaram anos de muito má memória, anos para esquecer? Eis alguns ditos retirados do antigo catálogo de apresentação do nosso país: “Guiné-Bissau, um país à deriva, sem rumo, um país perdido”; Guiné-Bissau, uma caricatura, um país folclórico”; “Guiné-Bissau, um Estado capturado por militares e políticos golpistas, que até se arrogavam o direito de “negociar” a paz com autoridades legítimas entretanto indefesas” (Leia-se: que era um país obediente a golpistas que podiam, sempre que quisessem, desarticular manu militari o Estado constitucional, quebrando a paz civil para servir seus próprios interesses, inconfessáveis); “Guiné-Bissau, um Estado governado por assassinos”; “Guiné-Bissau, um Estado pária” ; até de “narco-estado“ rotularam o nosso país.
Enfim, carregando, durante anos seguidos, esse estigma de ser um país que só era visível negativamente, também os guineenses, como era inevitável que assim fosse, sentiram-se duramente atingidos quer na sua autoestima pessoal como na sua própria dignidade nacional.
V Enfim, um Guiné-Bissau positiva
Sucedeu que nos últimos três anos, o percurso político e diplomático que o nosso país foi capaz de fazer – para se levantar do chão – acabaria por descrever, efetivamente, uma volta completa. De facto, virou-se mais do que uma página. É todo um capítulo da nossa história política que está a ser deixado para trás.
Será necessário lembrar que estamos a presidir a Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da CEDEAO? Que longe de ser uma coisa menor, ela é, a todos os títulos, de uma relevância muito grande, um indicador muito substantivo do Estado que os guineenses querem ter: digno, respeitado no mundo, onde eles próprios se possam rever.
Vale lembrar a notoriedade guineense à frente da Aliança dos Líderes Africanos na Luta contra a Malária (ALMA) que, nessa instância internacional que se organizou para congregar esforços e meios de combate ao flagelo da Malária em África, projeta uma Guiné-Bissau positiva. Aliás, foi aí, nesse fórum (da ALMA) que, recentemente, o Chefe de Estado guineense surpreendeu no bom sentido: tomou a iniciativa de convidar o Primeiro-Ministro de um país não africano, Portugal, que, por sua vez, assentiu em envolver o Governo português muito mais ativamente na concretização dos propósitos da ALMA.
E já agora, uma notícia. O Presidente guineense Úmaro Sissoco Embabló estará amanhã, dia 6 de março, participando na 5ª Conferência dos Países Menos Avançados, em Doha (Catar) como Presidente de um Estado-membro, é certo. Mas também como alguém que foi distinguido com o título honorífico de “Campeão” desse grande evento internacional sob a égide das Nações Unidas. É uma distinção que também faz bem a Guiné-Bissau.
Quando, nas últimas décadas, é que se viu isso? Quando é que se viu essa elevação internacional do Estado guineense?
Parabens Presidente.
Viva Guiné-Bissau.
F. Delfim da Silva