Dando continuidade às duas edições anteriores deste jornal, segue,se a terceira parte do texto elaborado pelo Centro de Documentação Histórica da Luta Armada (CEDOHIL), pertencente à Secretaria de Estado dos Antigos Combatentes. Uma oferta aos nossos leitores
Como havia sido referido anteriormente, não se pode, de facto, ignorar que o ataque, por exemplo, dos nacionalistas angolanos à cadeia de São Paulo, em Luanda/Angola, na madrugada do dia 4 de Fevereiro de 1961, e o assalto da FLING em São Domingos (em Julho de 1961), não tivessem influenciado a determinação dos nacionalistas do PAIGC no ataque de 23 de Janeiro de 1963 contra o aquartelamento de Tite.
Porém, as circunstâncias internas ocorridas em 1961 e 1962 nas zonas de Quínara, São João e Bolama, precipitaram mais o ataque dos nacionalistas ao aquartelamento de Tite. Esses factores estavam relacionados, sobretudo, com a morte de Vitorino Costa e captura de valiosa documentação que trazia consigo na bolsa; os espancamentos, todas as formas de torturas ignóbeis e mortes sumárias dos nacionalistas presos, entre os quais Domingos Badinca, e a transformação das casernas de Tite em maior centro prisional de concentração dos militantes capturados desde Empada, Buba, Fulacunda, Tite e seu arredores e São Joã-Bolama.
À partir do fuzilamento de Vitorino Costa, os tugas passaram a orientar as detenções baseando-se na documentação apreendida deste. O número de detidos aumentou consideravelmente e, cada vez mais, era necessário esvaziar as celas para dar espaço aos novos detidos. Para ditadores carrascos, a solução não podia ser outra senão a tortura até a morte ou o fuzilamento. Não havia cemitério para a gentalha. Os cadáveres eram vazados como lixo dentro de valas comuns escavadas na mata traseira do quartel. Outrossim, muitos prisioneiros mortos não eram enterrados, mas sim queimados em Nam-Mancanha, uma localidade perto da pista de aviões.
A iniciativa do ataque foi decidida em Ndjassane, na base principal de Quínara comandada por Rui Djassi. A ponderação inicial de Rui Djassi e Malam Sanhá era para atacar a guarnição de Empada (zona controlada por Zé Sanha). Mas, tendo em conta às crescentes detenções e mortes sumárias de nacionalistas no aquartelamento de Tite, acrescidas da morte de Vitorino Costa (cuja cabeça foi exibida nas ruas de Tite), o comando decidiu atacar este com o objectivo de libertar os prisioneiros que lá se encontravam.
Apesar de terem a liberdade de circular no território da vizinha Guiné-Conacry, essa liberdade era relativa e controlada. A Guiné-Conakry acabava de aceder a independência, num ambiente internacional pouco favorável para o jovem Presidente Sekou Turé, isolado pelos europeus devido ao célebre grito de ‘’Não!’’ à autodeterminação que França estava a impor às suas colónias. Por isso, apesar de albergar os nacionalistas no seu território, com o estatuto apenas de ‘’refugiados políticos’’, ainda estava prudente em não permitir a circulação das armas estranhas no seu país, para não ser acusado por Portugal de ingerência na província da Guiné Portuguesa, e agravar ainda mais as hostilidades e boicotes externos. A conta gota, O Bureau do PAI já tinha começado a receber armas clandestinamente em caixotes camufladas de sardinhas e conservas para os refugiados políticos de Amílcar Cabral, mas não sabiam como fazé-las chegar às matas da revolução sem pôr em causa esse estatuto de refugiados, sob pena de serem presos e expulsos de Conakry.
Era um risco enorme. Mas que maior risco seria, para além da morte certa que os patriotas já tinham começado a enfrentar? Entre o medo, a ponderação e a necessidade de experimentar a acção ansiosamente aguardada, surgiram voluntários arriscando a sua própria pele. Quem, pela primeira vez, atravessou a fronteira com uma mala de madeira cheia de armamento, foi Zé Sanha, que entregou a carga na base de Saturnino Costa, próximo de Cameconde, no sul. Da segunda vez, foram os dois: Zé Sanha, que conduziu a mala para Empada, e Malam Sanha, que fez a entrega ao Rui Djassi, em Ndjassan. Foi a parte dessas munições que veio a ser utilizada no assalto de Tite. Joseph Turpin, que já vivia em Conakry e era fluente em francês e se desenvencilhava na língua susso, foi quem mobilizou os condutores dos autocarros de transporte público que faziam carreiras até Boqué, junto da fronteira. Da primeira vez, o condutor e o ajudante, tomando conhecimento do conteúdo da carga, fugiram a correr para não serem envolvidos, até serem convencidos por Turpin.
A determinação de atacar o aquartelamento de Tite coincidiu com o regresso do grupo de nacionalistas que, no segundo semestre de 1962, se tinham retirado provisoriamente para Calunca, próximo da fronteira com a Guiné-Conacry, O grupo regressou abastecido em Ndjassan com quatro “patchanga” (metralhadora DEGTYAREV RDP ligeira) de calibre 7,62 mm, muitas pistolas Walther P38 de 9 mm, bombas e granadas.
No aquartelamento de Tite, estava o Batalhão de Caçadores n.º 237, dirigido, na altura, pelo Tenente-Coronel Tavares de Pina. Na realidade, Tite, entre 1961 a 1963, era o comando central que controlava a Zona Militar Sul da Guiné Portuguesa, tendo recebido as Companhias de Caçadores sediadas em Fulacunda, Buba e Bedanda. Esta última companhia era constituída por tropas nativas. Enquanto militante clandestino desde Bissau, Zé Sanha, quando era soldado colonial, tinha sido enviado para esta companhia, durante o qual conseguiu mobilizar compatriotas para a causa da libertação, antes de desertar para as matas.
O comando do exército colonial de Tite desempenhava as funções de Oficial de Operações e Informações, e ainda de oficial de informação cripto. Até Janeiro de 1963, o trabalho operacional daquele Comando era dirigido às localidades de Enxude, Entroncamento (mais tarde designada Nova Sintra), Gã-Tongho, São João-Bolama, Buba, Fulacunda, Djabada-Porto e Gampara, para actividade de patrulhamentos e da dita acção “psico-social”. Em Fulacunda, estava a Companhia dos Caçadores 153, comandada pelo Capitão de Infantaria, José dos Santos Carreto Curto. Em Buba, estava a Companhia de Caçadores 152 (e 154?), comandada pelo Capitão de Infantaria Carlos Alberto Blasco Gonçalves.
Quanto aos nacionalistas do PAIGC da zona 7, o comando central ficava em Ndjassan, e era dirigido por Rui Djassi. Tinha as suas subsecções dispersas por várias localidades, fazendo face ao avanço dos tugas. O grupo de Arafam Mané instalou-se em Gã-Djabela, voltando-se para Tite. À partir do plano secreto de Ndjassan para o ataque a Tite, o grupo de Malam Sanhá, que se havia posicionado em Cantona, fazendo face Fulacunda, foi autorizado a abandonar aquela secção e juntar-se ao grupo de Arafam Mané em Gã-Djabela. Com a junção destas duas unidades, Malam Sanhá, de pseudónimo NERU (um dos que já tinham experiência militar quando estavam no exército colonial), passou a dirigir todas as operações no sector, incluindo o histórico ataque de Tite a 23 de Janeiro de 1963. Sob o seu comando estavam Arafam Mané a chefiar a sub-secção de São João-Bolama (que ele conhecia melhor) e Quemo Mane, a sub-secção de Tite Djabada-Porto (em cujo espaço ele viveu desde infância e, onde era exímio caçador nativo)
Continua na próxima Edição.