Empoderamento regional: um desafio de geração

Autodeterminação democrática local, um direito democrático ‘congelado’, que ainda espera pelo seu dia, já la vão 25 anos! Várias questões hoje se põem. Por exemplo: vai esta “geração 2020” conseguir libertar as regiões do paternalismo das autoridades centrais? Vai esta nova geração de políticos, conseguir devolver às nossas regiões o direito a ter voz própria, e fazer o poder central respeitar o princípio de subsidiariedade?

Vai o ano de 2021 simbolizar a consolidação de um paradigma político-económico novo, que realmente priorize o desenvolvimento regional?

Vão os nossos jovens – num sobressalto cívico e politico próprio destes novos tempos – organizar-se para celebrar os 50 anos da Guiné-Bissau (1973-2023) no próprio chão de Boé (na Região de Gabú), isto é, numa localidade muito simbólica do interior que abandonamos?

Vão ousar lançar uma subscrição nacional de angariação de meios financeiros – por exemplo, para a constituição de um Fundo Quinquagésimo Aniversário, porque não? – Que serviria para realizar diversas benfeitorias no setor de Boé incluindo, certamente, pequenas obras de restauro do património histórico bem como para a edificação de um memorial no sítio onde o Estado da Guiné-Bissau foi proclamado.

Vão fazer isso? Vai esta “Geração 2020” fazer, simbolicamente, o seu próprio ‘regresso às origens’: encher o peito de patriotismo, soletrar de novo a gramática da independência nacional, aliás, desde o início pensada como “marcha forçada para o progresso económico e social”?

Outras perguntas poderiam, com certeza, fazer todo o sentido. Mas esta pequena amostra de questões que acabei de suscitar serve bem, a meu ver, para configurar o que chamei de “desafio de geração”. Um desafio que se põe hoje, vinte e cinco anos depois da instauração de um regime democrático que atravessou todo este tempo – de turbulência em turbulência -, praticamente sem bússola.

2Um passivo

 Durante o tempo de vida deste regime democrático – de 1994 a 2019 -, que parece ter falhado quase em tudo, nomeadamente, no combate à pobreza; na promoção da coesão territorial e social; na redução das desigualdades e assimetrias sociais – pode bem dizer-se que as consequências negativas, particularmente as consequências institucionais, económicas e sociais mais gravosas que resultaram de políticas públicas erradas, ou que foram provocadas por inércia de um Estado demasiadas vezes disfuncional, têm atingido com muito maior intensidade as regiões, o interior do

nosso país.

Mais chocante terá sido o facto de, em “plena” democracia multipartidária, as nossas regiões terem ficado, de repente, excluídas do jogo democrático propriamente dito; sem condições de visibilidade política ou funcional, menos ainda de exercício autónomo de um qualquer protagonismo socialmente construtivo.

Foram empurradas, todas elas, para uma sombra política que as descaracterizou, inteiramente submetidas ao paternalismo dos poderes centrais instalados.

Paternalismo que, por princípio e por experiência histórica sobejamente conhecida, nunca foi muito amigo de um desenvolvimento económico e social que seja sustentável.

Dir-me-ão – e não nego isso – que autonomia autárquica não garante, por si só, uma dinâmica sustentada de progresso económico e social. Contudo, imaginar um desenvolvimento sustentável à margem de instituições que promovam a liberdade de pensar e de agir, mormente desligado do princípio de autonomia autárquica – teria sido manifestamente um contrassenso.

E se, ainda nos lembrar-nos de que o preço, traduzido nos maiores sacrifícios consentidos durante onze anos de guerra da independência, foi ‘pago’ sobretudo pelas populações do interior, então, fácil se torna identificar neste longo naufrágio económico e social das nossas regiões, uma clara falência ética da democracia guineense.

De alguma riqueza que, na nossa terra, ainda se vai produzindo, é o “centro” que concentra demasiado, que mais consome, que menos redistribui, contando ‘sempre’ com o silêncio garantido das regiões “democraticamente” amordaçadas há décadas.

Foi, pois, sem grandes surpresas que as regiões se degradaram. Algumas mais lentamente; outras mais rapidamente; mas todas se mostraram-se impotentes para resistir à decadência económica e social, uma tendência que parecia, em tudo, ser irreversível, uma fatalidade, um destino.

 Entre outras vozes de indignação, também eu já levantei a minha voz, por escrito e mais de uma vez, contra o retrocesso político, institucional, económico e social a que as nossas regiões, de facto, se viram condenadas. Numa das vezes em que o fiz, foi por um texto que redigi e fiz circular em 2014 no congresso de um certo partido político e, como quase sempre me tem acontecido, ninguém pareceu ter endossado a “questão regional” guineense nem na sua gravidade, menos ainda na sua urgência. Agora também pergunto: vai o Jornal Nô Pintcha endossar a “questão regional” guineense e fazer dela uma de suas bandeiras editoriais?

 Nô Pintcha que nos quarenta e seis anos da sua existência, um tempo que inclui todos estes anos da nossa famosa democracia multipartidária, foi o jornal que arquivou nas suas páginas o retrato pungente da decadência das nossas regiões, um declínio a que, a própria nação não se podia escapar.

Poder local e poder central:

Instituições co originárias

Um dos períodos políticos e institucionais mais fecundos da nossa história foi seguramente aquele que vai de 1971 (até) à formação da Assembleia Nacional Popular (a Constituinte), órgão de soberania que viria a votar a Constituição e proclamar, a 24 de setembro de 1973, a República da Guiné-Bissau.

Com o fracasso da “Operação Mar Verde” (a invasão a Conakry por um corpo expedicionário português, a 22 de novembro de 1970) tudo tinha mudado: a conjuntura politica e internacional, a natureza das respostas do PAIGC e do inimigo, enfim, nada mais, depois de 1970, seria como antes.

Como se percebe, não vou, neste texto, falar muito disso, além desta pequena lembrança que aqui anotei, e que serve apenas para datar o início de um período crucial, performativo, fundacional, do Estado guineense. Em suma: foi um tempo de construção institucional do Estado. Que é, talvez, o maior dos legados – o institucionalismo, a cultura do institucionalismo – que nos veio da luta de libertação nacional que, todavia, mal conseguimos preservar e, pior ainda, desenvolver.

Dando seguimento à tese cabralista, uma tese consistente “com as leis e a moral internacionais dos nossos dias, e com a Carta e resoluções das Nações Unidas”, Amílcar Cabral (Secretário-Geral do PAIGC) e Fidélis Cabral Almada (Responsável dos Serviços de Justiça e da População) assinaram, a 3 de Dezembro de 1971, as Bases para a criação da Assembleia Nacional Popular na Guiné, um documento de maior valia histórica – que também incluía uma Lei Eleitoral… – , e que se desdobrou em dez Bases, das quais trago apenas algumas, em excertos mais substantivos: Base I

De acordo com as decisões tomadas pela reunião do Conselho Superior de Luta de 9 a 17 de Agosto de 1971, sob proposta baseada do Secretário-Geral do Partido e após amplo debate, devemos tomar, imediatamente, todas as medidas necessárias em vista da criação, no mais curto prazo possível, da 1ª Assembleia Nacional da Guiné. A Assembleia Nacional Popular da Guiné é criada na base do principio segundo o qual o poder vem do povo e deve servir o povo (…) Base II

A primeira ANP é constituída por 120 representantes. (…) Os dois terços da ANP (80 representantes) são formados por elementos saídos das massas populares trabalhadoras e dos estudantes, e outro terço de elementos (40 representantes) saídos dos quadros militantes do PAIGC. (…) Base V

Na fase atual da nossa luta, os representantes da ANP são eleitos pelos Conselhos Regionais entre os seus membros, por uma maioria de dois terços. O Conselho Regional (CR) é a Assembleia dos representantes eleitos do povo trabalhador, dos diversos sectores político-administrativos e militares, que formam as regiões e as frentes. (…). Cada candidato eleito no sector – cada representante do povo no sector – terá o mandato deste povo para o representar no seio do conselho regional, e para ser candidato à representação no seio da ANP e eleger os representantes à ANP (…).

Não me vou alongar na exposição, ainda que de forma sucinta destas “Bases…”, que foram verdadeiramente históricas quer na sua conceção que na sua implementação. É caso para dizer: dito e feito.

E Cabral reportou: “Depois de oito meses (janeiro a Agosto) de uma intensa campanha de informação, de debates e de discussão tanto nos organismos de base do Partido como em grandes reuniões de massas, as eleições foram realizadas do fim de Agosto a 14 de Outubro.

A 6 de Novembro, durante uma Conferência de imprensa em Argel, foram tornados públicos os primeiros resultados parciais das eleições…” Dito isto, concluo este ponto assim: a República da Guiné-Bissau nasceu como um Estado constitucional trazendo na sua matriz duas instituições co originários, a saber:

o poder local (emanação dos Conselhos Regionais) e o poder central (emanação da Assembleia Nacional Popular). Ora, nos últimos 25 anos, a democracia multipartidária que nasceu em 1994, pareceu ter convivido bem com um poder local constitucionalizado, mas completamente ausente da realidade. Trata-se de uma lacuna institucional duradoura que evidentemente, contribuiu muito para degradar as regiões, antes de mais, uma degradação que lhes atingiu na sua ‘primordial’ habilitação institucional, desqualificando-a. E, de aí o desafio político maior que consiste no empoderamento institucional das regiões da Guiné-Bissau.

Representação política: uma questão de método, mas não só… Na Lei Eleitoral, no seu artigo 122 º, o legislador fixou, e bem, (cito,), “as regras do método de representação proporcional de Hondt para a conversão de votos em mandatos”, referindo-se – com a frase “conversão de votos em mandatos” – à fórmula (distributiva) como isso se faz. De como se deve proceder para, com base nos votos obtidos individualmente pelos partidos concorrentes, distribuir-lhes os mandatos  (deputados) em conformidade. Ora, este mesmo legislador entendeu não fazer o mesmo, no artigo 115 º da mesma lei, para o caso dos círculos eleitorais. Ali, ele omitiu, o método pelo qual devem ser distribuídos os 100 assentos parlamentares (mandatos, deputados) pelos círculos eleitorais plurinominais, evidentemente, com base no recenseamento eleitoral atualizado.

Ao invés disso, o legislador deixou cristalizar uma determinada “distribuição dos deputados por círculos eleitorais” – aquela que foi feita para as primeiras eleições legislativas (1994). E, assim, permitiu que uma variável, sempre dependente dos rácios de uma demografia eleitoral, dinâmica, não estática -, passasse a ser uma constante distributiva, imutável, completamente independente da sua fundamentação demográfica, racional.

Como se percebe, os dois círculos eleitorais de emigração, não sendo círculos plurinominais, não entram no âmbito da presente argumentação. Concluindo: pelo artigo 122º temos uma ‘matemática’ para distribuir mandatos aos partidos, matemática que incide sobre a votação expressa, nomeadamente, os votos válidos para produzir resultados eleitorais. Pelo artigo 115 º ao contrário, não há ‘matemática’ nenhuma para distribuir mandatos pelos círculos eleitorais. Esta “matemática” ausente, como se percebe, aplicar-se-ia aos dados do recenseamento eleitoral mais recente.

Em vez disso, a lei “gravou a tinta indelével” num “quadro anexo”, uma determinada distribuição de mandatos. Sucedeu que, há vinte e cinco anos, esta mesma Lei Eleitoral continua a não ter um método de distribuição! Ora, uma distribuição concreta (por exemplo, aquela que se aplicou em 1994), é uma coisa. Já um método de distribuição, é outra coisa bem diferente. Repito: na lei, temos uma distribuição. Na lei, não temos um método de distribuição.

No fundo, é, pois, uma questão de método. Que eticamente vai cruza-se com o principio de equidade, com o princípio de igualdade. E que pode resumir-se em duas palavras: quantos deputados deve, democraticamente, caber a cada circulo eleitoral? Ou formulando a pergunta de outro jeito: como determinar a legitimidade de termos círculos eleitorais de 4 deputados; alguns de 5; um, de 6; e a maioria deles de apenas 3 deputados? Como se justifica tal distribuição, que ainda se mantém, vinte e cinco anos depois de ela ter sido estabelecida na Lei Eleitoral?

Ora, sempre que este problema é posto – e eu estou a pô-lo há vinte anos, verbalmente e por escrito -, a resposta manteve-se invariável: o muro do silêncio, o bloqueio do discurso. Mas como assim? – se a democracia é uma prática discursiva! E vou terminar esta minha intervenção com as seguintes palavras: se voltei, de novo, a estas questões institucionais – do poder local constitucionalizado e da representação politica racionalizada – é por considerar que uma janela de esperança tornou a abrir.

Um tempo novo, da “geração 2020”. Que – espero bem que sim – vai ter mais sorte, mais inteligência e mais força política do que a minha própria geração. Para pensar e concretizar reformas estruturais – nas institucionais politicas e nas instituições económicas do nosso país – e, assim, poder voltar a sonhar, e poder resgatar aqueles ideais que inspiraram a nossa luta pela independência.

Bissau, 26 de março de 2021 F. Delfim da Silva

About The Author

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *