Sistema político: Um preâmbulo

Entre tantos desafios do futuro, alguns deles já estão inscritos no presente, mas aquele que, hoje em dia, mais avulta no plano político é, do meu ponto de vista, o imperativo de construção ou, antes, de reconstrução da própria ordem constitucional democrática.

No fundo, uma necessidade parece impor-se: superar os passivos institucionais e outros, que herdamos destes primeiros 25 anos da nossa democracia (1994-2019). É uma tarefa que, nestes tempos de renovação, recai quase inteiramente sobre os ombros da “geração 2020”, a menos que esta permitisse, por assim dizer, mais um ‘adiamento’ geracional do seu país.

O que, a ser assim, testemunharia algo de tal modo grave que duvido muito se ela aceitaria um tal ‘destino’: a falência de suas próprias capacidades e, por conseguinte, uma ‘rendição’ diante do crepúsculo da esperança de que, hoje em dia, ela tão assertivamente se fez portadora.

Tendo, pois, a acreditar que isso – a configuração de um cenário de pesadelo – não se vai concretizar. Até porque, uma grande parte de todos os anos vividos por esta “geração 2020” foi passada precisamente sob este mesmo regime democrático. Que lhe frustrou tantos sonhos e tantas expectativas, precisamente por força de uma falência política e falência ética largamente documentadas: mais de duas dezenas de governos (foram executivos efémeros, claro) mediados por golpes de todas as naturezas – golpes militares e golpes político-partidários e, também, os golpes geneticamente híbridos, isto é, aqueles que nos chegaram com um acentuado recorte político-militar. Por fim, ‘sobrou’ um passivo enorme e duradouro: a cristalização de um modelo económico de pobreza garantida, de pobreza obrigatória. Que, aliás, continua a representar a ameaça mais séria e permanente à estabilidade politica e à consolidação institucional da democracia.

Democratização do poder local

 Por hoje, trago para o meu leitor, dois pontos. Primeiro ponto: um fracasso que nos envergonha a todos – a classe politica e os governos de turno – enfim, todos sem exceção. Refiro-me a nossa manifesta e persistente incapacidade de democratizar o poder local constitucionalizado.

 E se não fosse por ‘dever’ para com a “geração 2020,” escusado seria vir agora lembrar certas coisas, por exemplo, de que tal fracasso exprimiu, de facto, um retrocesso do próprio ethos politico originário, aquele que tanto havia distinguido, pela positiva, o processo histórico de constituição do Estado guineense. Pelos vistos, não aprendemos bem a lição. E nem sequer a aprenderam os próprios ‘guardiões do templo”, uma pena.

Representação politica

O segundo ponto, é o próprio sistema eleitoral. Mas será  apenas para o escrutinar de um determinado ângulo, muito específico. A sua revisão, na retórica geral que consumimos, tem deixado “de fora” precisamente o ponto que, a meu ver, mais deveria ter atraído o foco das atenções dos quadros políticos e, principalmente, do legislador democrático, caso uns e outros se tivessem mostrado mais sensíveis à questão de representação política, um tema cuja ocultação se arrasta há décadas.

Ou melhor: se, por saberem muito bem que ao princípio (adotado) de representação proporcional, subjaz o princípio de igualdade, o princípio de equidade, tivessem retirado disso a consequência que se impõe: a modificação daquele artigo da Lei Eleitoral (o 115º. e o seu quadro anexo) que tomou o resultado de uma variável como se ele fosse uma constante pré-determinada. Neste particular, o facto talvez mais saliente é um muro de silêncio que se ergueu a volta das condições de processamento da representação política, que – escusado seria dizê-lo – deveria estar no cerne da própria razão democrática, se ela fosse, não direi, bem entendida, mas apenas devidamente assumida. É verdade: por mais estranho que possa parecer, o problema de representação proporcional dos círculos eleitorais no parlamento guineense tornou-se um tema tabu, não se discute, é como se ele nunca tivesse existido. Tornou-se mítico e, como é próprio dos mitos, foi posto completamente fora do âmbito da razão. E, a propósito disso, até já ouvi alguém a realçar o papel da sorte nesta ‘história’: que, na distribuição dos assentos parlamentares pelos círculos eleitorais, houve alguns que, por sorte, ganharam E que, por falta de sorte, houve outros que perderam! O leitor está a ver? Que é à sorte – à toa – que a distribuição se fez e, depois, que também foi por sorte que se cristalizou este longo e perverso consenso: os que têm sido beneficiados e os que têm sido fortemente penalizados, concordam todos – admiravelmente – em não falar do assunto, em deixar tudo ficar na mesma!

Distribuição proporcional

Efetivamente, até hoje, ainda não se ouviu nenhuma pressão politica (partidária ou parlamentar), nem sequer uma pressão da cidadania (da chamada ‘sociedade civil’) no sentido de se tentar corrigir o que não é senão uma fonte de distorções na representação política e, portanto, causa de injustiças eleitorais, evitáveis. Trata-se, no fundo, de um problema muito fácil de resolver, enquanto que, pelo contrário, a teimosia de se querer e de se ter conseguido continuar a laborar no erro óbvio que o suporta, parece ocultar algo que é ainda muitíssimo mais grave do que o próprio erro em si: o bloqueio da própria “razão comunicativa” ou, para falar ainda com Habermas, a resistência à “coação não-coativa do melhor argumento”.

 Ora, nós já sabemos, mais ou menos, o que, no passado, nos aconteceu precisamente por causa da nossa incapacidade de dialogar, produtiva e construtivamente. E, hoje, eu não tenho muitas dúvidas quanto ao que ainda nos espera enquanto não formos capazes de enraizar, entre nós, uma cultura de diálogo ou – para o dizer mais uma vez -, enquanto não libertarmos a nossa “razão comunicativa” (no sentido habermasiano). E fico por aqui, hoje, deixando para a próxima semana a tarefa de desenvolver os dois pontos que anunciei.

Bissau, 15 de março de 2021

F. Delfim da Silva

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