Resolução de conflitos “É fundamental que as partes reconheçam a imparcialidade da pessoa ou entidade mediadora”

  • defende a diretora da Voz di Paz

A diretora da ONG Voz di Paz aponta neutralidade como principal requisito que deve ser preenchido pela pessoa ou autoridade que pretende ser mediador de conflitos. Udé Fati fez esta observação em entrevista que concedeu ao “Nô Pintcha”, durante a qual esclareceu, entre outros assuntos, a natureza de conflitos; o papel das estruturas da Voz di Paz nos esforços de mediação junto das comunidades; o recurso à linguagem violenta na comunicação social, assim como o aprofundar da chamada instrumentalização étnica para fins políticos. A seguir, o conteúdo da entrevista.

Nos últimos tempos têm-se multiplicado os conflitos, sobretudo no seio das comunidades rurais. Senhora coordenadora, como é que a Voz di Paz encara esses diferendos sociais do ponto de vista de prevenção e resolução?

Na verdade, dizer que os conflitos se têm multiplicado nos últimos anos torna-se difícil quantificar o seu número, visto que ainda não temos um observatório que registe a ocorrência de conflitos em todas as localidades do país. Isto faz-nos pensar que é possível que, nos últimos anos, tenha havido denúncias sobre o assunto o que obriga a ser debatido em público.
A Voz di Paz está a trabalhar no terreno desde 2007 e tem registado ocorrências através das suas estruturas denominadas Espaço Regional de Diálogo. Temos mais de 90 pessoas em todos os setores da Guiné-Bissau que ajudam na mediação e resolução de conflitos a nível das comunidades.

Por isso digo que é difícil dizer se houve aumento ou não de conflitos. Por essa razão, as pessoas passaram a prestar maior atenção a esses problemas e denunciá-los, embora nós, Voz di Paz, termos estruturas locais que ajudam na resolução pacífica de conflitos.

Estas estruturas da nossa organização trabalham não só com os líderes tradicionais, mas também com os representantes do Governo a nível das localidades. Alguns deles são pessoas influentes da zona que, quando tiverem conhecimento de algum conflito, não ficam à espera que as pessoas venham denunciá-lo partindo, de imediato, ao encontro do problema a fim de ajudar na sua resolução. Muitas das vezes essa ocorrência ou resolução pacífica do conflito é reportada à Voz di Paz através de um documento a que chamamos de Relatório de Ocorrência de Conflito.

Na vossa opinião, o que está na origem do aumento sistemático de conflitos entre as comunidades que, no passado, coabitaram pacificamente?

Nem todos os conflitos são da mesma natureza. Por exemplo, os reportados pelo Espaço Regional do Diálogo podem vir de diferente índole, por exemplo, os ligados à posse de terra; entre agricultores e criadores de gado; entre familiares e heranças, entre outros.

A nível da sociedade tem-se falado ultimamente em divergências políticas que, às vezes, são mal resolvidas, porque assistimos cada vez mais a confrontação entre pessoas em conflito. Se outrora as pessoas recorriam a meios pacíficos para resolver conflitos, atualmente preferem a via da controvérsia.
Nos últimos anos a violência verbal tem aumentado no seio da sociedade. Podemos até dizer que com o acesso facilitado aos meios de comunicação, sobretudo em programas de rádio, verificamos que se recorre a linguagem carregada de insultos e ofensas à dignidade das pessoas.

É do conhecimento de todos que a imprensa tem grande influência no comportamento dos cidadãos. Se a nível da rádio, por exemplo, onde as emissões têm uma capacidade de difusão bem grande, as pessoas utilizam linguagem imprópria e, até, insultuosa para expressar o seu descontentamento, também a nível da comunidade as pessoas utilizam essa mesma forma de comunicação para se atacarem.

Quando esse tipo de linguagem entra no quotidiano das pessoas, não é de estranhar que a violência tenha sido a forma que as pessoas encontram para a resolução dos seus problemas.

Nós, enquanto cidadãos que trabalhamos no domínio da paz, podemos afirmar que o conflito é uma coisa natural e, às vezes, pode até ser salutar. Agora, o que podemos mudar é a forma que escolhemos para a resolução dos problemas.

É nesta perspetiva que apelamos às pessoas a enveredarem por caminhos pacíficos na resolução de conflitos e não a utilização de linguagem violenta. Aliás, no quadro da implementação dos nossos projetos estamos também a capacitar as pessoas para o uso de comunicação não ofensiva.

O Governo, através do Ministério da Administração Territorial, tem-se desdobrado em missões de mediação e resolução de conflitos no meio comunitário. Que leitura faz desse desempenho?

A iniciativa é boa, mas sabemos que para a mediação ou resolução de conflitos há critérios que devem ser observados, principalmente a neutralidade da pessoa que quer ser mediadora ou pacificadora de conflitos. O problema não deve ser tratado por alguém que as partes não reconhecem a sua imparcialidade.

A pessoa até pode preencher este requisito, mas é fundamental que lhe seja reconhecida a sua virtude ou autoridade para que o diferendo seja bem resolvido.
Sabemos, igualmente, que muitas vezes na cobertura do pelouro governamental ainda há dificuldades em certas zonas de dissociar o Governo do poder coercivo, que utiliza força para poder manter a ordem. Se, por exemplo, não reconhecem isso, a diligência pode não trazer resultados satisfatórios.

Se o Governo quer trabalhar na mediação e resolução de conflitos, é bom explorar as estruturas locais que trabalham nesse domínio, gente que a nível da comunidade é reconhecida como competente e idónea naquela localidade.

Acho que isso podia, talvez, trazer mais benefícios ou resultados mais positivos do que ser o próprio Governo a tentar resolver o problema pontualmente. Portanto, a paz só se consegue com a resolução de problemas pontuais através da criação de condições de trabalho às estruturas locais.

Os problemas étnicos e/ou políticos têm algum peso ou influência no surgimento desses desentendimentos?

Não considero que estejamos perante problemas étnicos, porque muita das vezes confundimos as manifestações de conflito com as suas causas. Na primeira, podemos ter duas pessoas de etnias diferentes a confrontarem-se, mas isso não significa que o conflito tenha natureza étnica.
Quanto aos problemas delicados, sabemos que há um aprofundar da chamada instrumentalização étnica para fins políticos, mas isso ainda mão ganhou suficientemente força no país para que possamos dizer que há conflitos de natureza étnico-político.

Se, por um lado, existe uma forte tendência de chamar as etnias para abraçarem projetos políticos de uma forma pouco ética, podemos dizer que há também organizações da sociedade civil e comunidades que estão cada vez mais capacitadas para poder identificar esta manipulação ética e não cair nessa incoerência.

Porém, não podemos descurar que existe esta tendência, porque num trabalho desenvolvido pela Voz di Paz para identificar as causas de conflitos em 2008 e 2009 e publicado em 2010, a instrumentalização étnica para fins políticos encontra-se entre as 17 causas mais constatadas no país.

Quais são os constrangimentos para a construção e consolidação da paz na Guiné-Bissau?

Os constrangimentos são muitos e, como se diz, a paz não significa somente ausência de guerra. São desafios ligados à satisfação das necessidades básicas das pessoas. Enquanto houver brigas entre cidadãos, as pessoas são cada vez mais fáceis a ser mobilizadas para a criação de distúrbios ou manifestar de uma de outra forma o seu descontentamento.

Na verdade, há dificuldades enormes ligadas à saúde, educação e acesso a serviços básicos. Isso só para dizer que quando não há muitas oportunidades para a satisfação das necessidades básicas, de emprego e de procura de meios económicos para poder levar uma vida mais ou menos aceitável, existe sempre esta tendência nas pessoas.

Acho também que faltam espaços de diálogo sincero, onde todos os membros da sociedade possam sentir-se representados para exporem as suas ideias e conhecerem quais são os projetos que estão a ser desenvolvidos em seu favor.

A questão de justiça é fundamental. Por isso é que há a convicção de que paz sem justiça dificilmente constrói alicerces de sustentabilidade. Há muitos ingredientes para podermos pensar numa paz sustentada. Por exemplo, eu gosto muito de uma das mensagens da Voz di Paz que diz que a paz é um bem comum e obra de cada um.

É bom que, enquanto guineenses, sintamos todos responsáveis ela paz que desejamos e não esperar que seja o Governo vai trazer este bem tão necessário para a vida de todos nós. A nossa atitude e o comportamento do dia a dia podem ser um grande contributo para que tenhamos paz.

A Voz di Paz tem alguma fórmula para dirimir conflitos?

A paz é um processo. Acho que nenhuma nação, até hoje, pode garantir que vive numa paz efetiva que, a todo o momento, pode ser abalada. Não existe uma fórmula capaz de garantir todos os pressupostos que conduzem uma sociedade para a paz. Independentemente de quem seja a pessoa ou instituição, são os indivíduos que constroem e consolidam a paz, porque trata-se de um problema entre cidadãos. E nós precisamos de pensar a paz como uma missão de todos nós. Acho que esta mentalidade é muito importante e fundamental para que todos nos sintamos responsáveis pela paz que se deseja para o país.

Quer deixar uma mensagem de paz?

Estou cada vez mais preocupada com o nível de violência que se verifica atualmente, sobretudo a verbal que tem abalado a sociedade. Por isso, quero convidar todas as pessoas que quando estiverem a comunicar, que o façam usando uma linguagem mais responsável, que não ofenda a sensibilidade das pessoas, independentemente de quem elas sejam.
Texto: Adulai Djaló
Fotos: Aliu Baldé

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